Isabella Frajhof
Em agosto de 2016, a professora de Cambridge, Julia Powles, foi entrevistada pelo centro independente de pesquisa interdisciplinar InternetLab, em São Paulo, para falar sobre o direito ao esquecimento. Os entrevistadores, ao perguntaram à Powles quais seriam os aspectos importantes que uma legislação sobre o direito ao esquecimento deveria observar, fizeram referência a uma pesquisa conduzida pelo InternetLab sobre a posição dos Tribunais brasileiros em casos que envolviam a liberdade de expressão. Nesta pesquisa, ficou demonstrada a forte tendência dos magistrados em proteger os direitos da personalidade, sendo surpreendente o fato de que um terço destas ações envolviam políticos brasileiros, e que em 50 por cento destes casos eles foram indenizados.[1] Sua resposta foi a seguinte:
“(...) Novamente, isso diz respeito ao freio do interesse público, porque a minha concepção de direito ao esquecimento é que esses políticos não estão nem na disputa, porque há um interesse público. A não ser que a informação diga respeito à vida privada deles – e nós devemos conceder que existem componentes mesmo da vida de um político que devem ser privados – mas isso não tem relação alguma com a opinião de ninguém sobre eles politicamente, isso está aberto para as massas e é assim que deveria ser. Se alguém disser que direito ao esquecimento é outra coisa, então a pessoa está perdendo o ponto.[2]” (grifos meus)
Possivelmente, perdemos o ponto no Brasil. O recente julgamento da Terceira Turma do STJ, no Recurso Especial no 1.660.168/RJ, sobre o direito ao esquecimento demonstra isto. A divergência foi aberta pelo Ministro Marco Aurélio Bellize, seguida pelos Ministros Sanseverino Moura Ribeiro, sendo vencidos a Ministra Nancy Andrighi e o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que decidiram que os provedores de busca da internet têm o dever de implementar filtros para evitar que conteúdos indesejados deixem de retornar em uma pesquisa feita no nome de determinada pessoa.
O caso tratou de uma ação posposta por uma promotora de justiça (que quando da propositura da demanda ainda não era servidora pública) em face do Google, Yahoo e Microsoft, em que requeria que, quando uma pesquisa fosse feita em seu nome nos provedores de pesquisa daqueles sites, não retornassem mais notícias que envolvessem a suposta fraude praticada no XLI concurso de ingresso na Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. O caso chamou atenção, pois dos 24 aprovados no concurso, sete tinham laços de parentescos com desembargadores do Tribunal de Justiça daquele Estado. A fraude se referia ao “vazamento” do gabarito da prova de Tributário, e de marcações que identificavam as provas, em que diversos candidatos transcreveram o exato raciocínio lógico das respostas na prova, embora alguns deles tenham apresentado um baixo desempenho na prova oral, o que foi o caso da autora da ação.[3]
No processo para investigar o caso, conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por 7 a 4 foi decidido que o concurso deveria ser mantido. Os argumentos vencedores sustentavam que (i) não era possível afirmar com precisão quem havia sido o responsável pela fraude, e quem havia se beneficiado dela (a Polícia Federal não confirmou a tese de identificação pessoal das provas), e (ii) as consequências da revogação do concurso colocariam em xeque a validade das decisões judiciais dos magistrados aprovados, que já estavam empossados há 13 meses.[4]
A possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento a pessoas públicas sempre foi a exceção para a regra. Tanto é assim, que Sérgio Branco, ao pensar em critérios aplicáveis a casos que envolvam o direito ao esquecimento, estabelece que a análise da presença do interesse público (embora reconheça a dificuldade de definição do conceito) é fundamental para averiguar se o pedido deve ou não ser acolhido.[5]
Até mesmo o famoso caso do Google Spain, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)[6], que compreendeu que o direito ao esquecimento seria a possibilidade de que um indivíduo pudesse requerer que determinados links não retornassem mais quando uma pesquisa em seu nome fosse feita (também conhecido como um direito à desindexação), expressamente previu uma exceção a casos que possuíssem “interesse do público em dispor desta informação, que pode variar, designadamente, em função do papel desempenhado por essa pessoa na vida pública”.
Neste contexto, Eduardo Bertoni, Diretor da Agência Nacional de Proteção de Dados Pessoais na Argentina, produziu um curto artigo, publicado logo após a decisão do TJUE, apontando que o “direito ao esquecimento” seria uma afronta à América Latina, uma vez que a região tem passado os últimos anos investigando os acontecimentos da época da ditadura militar, e não tentando promover qualquer tipo de iniciativa que estimule que informações sejam apagadas.[7] Em tempos de investigações que envolvem políticos, como a Lava-Jato, e da constituição da Comissão da Verdade para investigar crimes ocorridos na época da ditadura civil-militar brasileira, possibilitar que pessoas públicas possam restringir informações de notório interesse público constitui verdadeira ameaça a liberdades fundamentais.
A mesma decisão europeia, como bem apontou Carlos Affonso Souza,[8] limitou o exercício do direito ao esquecimento à retirada de links que retornassem de uma pesquisa feita nos provedores de busca, e não a implementação de filtro. Inclusive, até a referida decisão, o STJ vinha se posicionando no sentido de que a remoção de conteúdo por parte dos provedores de aplicação deveria ocorrer mediante ordem judicial, e com indicação precisa dos URLs que contivessem o conteúdo considerado danoso.[9]
Especificamente em relação aos provedores de busca da internet, o STJ já havia decidido que os mesmos não possuem o dever de desindexar o conteúdo gerado por terceiros, independentemente se a vítima indicasse os URLs que continham a informação causadora do dano. Este entendimento, consolidado em 2012 no caso da apresentadora de TV, Xuxa Meneguel[10], vinha sendo mantido, sem que a obrigação de desindexar ganhasse o nome de “direito ao esquecimento”. Contudo, mesmo quando um pedido para que fosse realizada a desindexação foi denominado enquanto tal no caso S.M.S vs. Google Brasil Ltda.,[11] o STJ manteve seu entendimento anterior.
Até então, o Tribunal compreendia que a implementação de filtros nos provedores de busca constituiria uma forma de censura, implicando na violação do direito ao acesso à informação (artigo 220, da CFRB). No entanto, esta nova decisão altera toda a construção jurídica até então estabelecida, impondo que os provedores de busca da internet filtrem o conteúdo que deverá ou não retornar de uma pesquisa. Isto exigirá que o mesmo realize um monitoramento de todos os conteúdos existentes na rede que potencialmente poderão ser considerados lesivos para a autora da ação.
A maior controvérsia do filtro é que o mesmo é sobre e sub-inclusivo: ele pode acabar abarcando mais conteúdo do que deveria, e por isso, pode restringir informações que em nada se relacionam com aquilo que se pretende esquecer, ou acaba por não restringir conteúdos que deveriam estar abarcados pela busca. Este monitoramento para o controle do que deve ou não ser incluído na filtragem, como nota Samantha Ribeiro, “abre a possibilidade de se desenvolver um sistema que impede transparência e cria diferentes classes de informações, permitindo mais vigilância em seu significado mais fundamental, que é ser observado de cima”.[12] Cria-se, portanto, uma assimetria no acesso à informação, restringindo o seu conhecimento pelos usuários da rede, enquanto os dados continuam armazenados nos bancos de dados de empresas privadas, e até mesmo do próprio governo, comprometendo liberdades básicas e a privacidade dos cidadãos.
O novo entendimento sobre o direito ao esquecimento é uma ameaça para pressupostos democráticos, como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a memória coletiva, uma vez que (i) determina que os intermediários tenham que implementar filtros e, consequentemente, realizar um monitoramento do conteúdo distribuído na rede, e (ii) abre margem para que pessoas públicas possam restringir informações, apresentando-se à sociedade em sua melhor versão. Parece que esta decisão, proferida em ano eleitoral, chegou em bom momento para os candidatos políticos. Resta acompanhar se este foi um entendimento isolado, tendo sido julgado mais um caso à luz do caso concreto, ou se a Terceira Turma realmente irá mudar sua compreensão sobre o assunto.
[1] Em um artigo publicado recentemente pelo coordenador da PLEB, Fábio Leite, uma pesquisa semelhante a esta foi conduzida no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Os resultados da pesquisa podem ser conferidos aqui: LEITE, Fábio Carvalho. Nem todo case é um hard case: reflexões sobre a resolução dos conflitos entre liberdade de expressão e os direitos da personalidade no Brasil. In: ABREU, Célia Barbosa; LEITE, Fábio Carvalho, PEIXINHO, Manoel Messias (Orgs.). Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais. Vol. I. Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2017, pgs. 209-231.
[2] INTERNETLAB. Direito ao Esquecimento:Entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Entrevista com Julia Powles. InternetLab, São Paulo, 2017. Disponível em <http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2017/01/ENTREVISTA_JULIA_POWLES_v04.pdf> Acesso em em 25.07.2017.
[5] BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.
[6] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. C-131/12. Google Spain SL e Google Inc. v. Agencia Española de Protección de Datos e Mario Costeja Gonzales, j. em 13.05.2014.
[7] BERTONI, Eduardo. The Right to Be Forgotten: An Insult to Latin American History. Huffpost, 24 de nov. de 2014. Disponível em <http://www.huffingtonpost.com/eduardo-bertoni/the-right-to-be-forgotten_b_5870664.html> Acesso em 30.07.2017.
[8] SOUZA, Carlos Affonso. Direito ao esquecimento: 5 pontos sobre a decisão do STJ. JOTA, 13 de maio de 2018. Disponível em <https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/direito-ao-esquecimento-decisao-do-stj-13052018> Acesso em 16.05.2018.
[9] STJ, 3a Turma, REsp 1.274.971/RS, sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, j. em 19.03.2015 e STJ, 3a Turma, REsp 1.568.935/RJ, sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 05.04.2016.
[10] STJ, Recurso Especial no 1.316.921/RJ, 3a Turma, sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi, j. em 26.06.2012.
[11] STJ, Agravo Interno em Recurso Especial no 1.593.873/SP, sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi, j. em 10.11.2016
[12] Tradução livre de: “Opens the possibilitity of developing a system that hinders transparency and creates different classes of information. This allows for more surveillance in its more fundamental meaning of being watched from above”. IN: RIBEIRO, Samantha Souza de Moura. When Privacy Feed Surveillance: The ECJ’s Decision on Google vs. AEPD and the Brazilian Experience. Birkbeck Law Review, Londres, v. 3. pgs. 115-130, maio de 2015. Disponível em <http://www.bbklr.org/uploads/1/4/5/4/14547218/115_ribeiro_when-privacy-feeds-surveillance_15-05-06.pdf> Acesso em 03.06.2017.
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