"Direito ao esquecimento" no TJRJ
Silvia Follain
CASO 6 – N.C. X FUNDAÇÃO UNIVERSO
Apelação cível nº 0086302-75.2010.8.19.0002 – 7ª Câmara Cível – Rel. ANDRE EMILIO RIBEIRO VON MELENTOVYTCH
Resumo do caso
O autor foi preso com base em mandado expedido há mais de 21 anos fundamentado em condenação por falência fraudulenta. As informações relativas à sua prisão foram divulgadas no site da Polícia Civil e no Jornal O São Gonçalo. Este jornal publicou matéria de capa, que identificava o autor e narrava que estava foragido em uma mansão e que foi encontrado através de informações extraídas do blog disponibilizado pelo próprio condenado na Internet. Em razão disso, o autor ajuizou ação em face do Estado do Rio de Janeiro para apuração de responsabilidade civil pela prisão tida por ilegal e outra em face do jornal com pedido de remoção de seu nome e das referências à sua prisão do sítio eletrônico do jornal, além de indenização por danos morais. A sentença julgou improcedente o pedido, entendendo que ao jornal não cabe realizar a análise sobre a legalidade da prisão ou sobre seu fundamento legal, sob pena de ser restringida a liberdade de imprensa. As informações relativas ao cumprimento do mandado de prisão teriam sido repassadas por agentes públicos e o processo não corria em segredo de justiça. O TJ manteve a sentença na íntegra, corroborando o entendimento de que a matéria possuía cunho informativo e que não houve nenhum conteúdo ofensivo que extrapolasse o direito de informar.
Alegações do Autor
- que, em 06.08.2009, foi surpreendido por policiais que lhe deram “voz de prisão” em razão de mandado expedido há mais de 21 anos para cumprimento de prisão administrativa baseada em dispositivo legal não recepcionado pela Constituição de 1988.
- que sequer tinha conhecimento do fato que lhe foi imputado e que sua prisão foi abusiva.
- que o sítio oficial da Polícia Civil Estadual publicou notícia sobre o ocorrido e que o Autor também ajuizou ação em face do Estado do Rio de Janeiro com a “finalidade de obter o reconhecimento da responsabilidade civil que deve recair sobre as condutas inconstitucionais e ilegais desempenhadas pelos agentes do Estado”.
- que o jornal réu publicou reportagem de capa intitulada “Preso em Maricá depois de 21 anos fugitivo da Política” acompanhada de notícia com mais detalhes do caso, mencionando que estaria ele escondido em uma mansão, e divulgando foto do autor retirada de seu blog pessoal.
- que a matéria também foi veiculada por meio eletrônico e que houve abuso no direito de informar, “pois não bastasse discorrer acerca do fato, o Réu foi além ao introduzir palavras e julgamentos que não estavam e não se relacionam ao ocorrido”.
Pedido
Requer seja deferida a tutela antecipada para a exclusão por completo de qualquer referência a seu nome e aos fatos relativos à sua prisão do sítio eletrônico do Réu ou de outro “meio de publicidade de sua responsabilidade” sob pena de multa diária de R$10.000. Pleiteia, ainda, indenização pelos danos morais sofridos, que deveriam ser arbitrados em caráter compensatório e punitivo.
Tutela antecipada
A tutela antecipada foi indeferida, uma vez que a notícia foi veiculada pelo Poder Público e que, de plano, não foi observada vontade de degradar a dignidade do autor por parte da ré.
Contestação do Jornal
- que devem ser aplicados os arts.5º, IX e 220, §1º, da CRFB, que tratam do direito à informação e da liberdade de pensamento.
- que as informações publicadas reproduzem aquelas prestadas pela Autoridade Policial, não possuindo qualquer caráter valorativo.
- que a reportagem não possui caráter ofensivo ou fictício a ensejar dano moral.
Sentença
Não assiste razão ao autor. Os fatos divulgados pelo jornal ´O São Gonçalo´ não decorreram de processo judicial sob o manto do segredo de justiça. Cuidou-se de notícia de cumprimento de mandado de prisão expedido pelo Juízo da 2ª Vara de Falência e Concordata da Capital, emanado do processo nº. 0095892-79.2010.8.19.0001. Ao réu não compete a análise ou decisão acerca da ilegalidade da ordem judicial, ou ainda se houve abrandamento da norma legal, ou até mesmo prescrição da sanção. A imputação de cometimento de arbitrariedade ou abuso por parte da autoridade que comandou a prisão, não pode respingar qualquer efeito à imprensa que apenas noticiou o fato que não guardava sigilo judicial. O réu exerceu o livre direito de informação. Estabelece o inciso IX, do artigo 5º, da Constituição Federal que ´é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença´. O artigo 220 da Constituição Federal, no seu parágrafo primeiro, também dispõe que: ´Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV´. Logo, a reportagem se baseou em informações acerca do cumprimento do mandado, que foram passadas pelos agentes públicos. Se estes extrapolaram, desrespeitando eventual ordem de segredo de justiça, poderá o autor, em via própria, pedir a devida reparação. A ré não se conduziu mal, nem praticou qualquer ilícito. A matéria foi publicada nos limites constitucionais do direito de informar.
Pedido julgado improcedente.
Apelação do Autor
O autor interpôs recurso de apelação contra a sentença, reiterando a argumentação exposta na inicial. Reafirmou que as fotos publicadas e os termos utilizados eram degradantes, extrapolando o direito de informar e causando-lhe dano moral.
Acórdão
No caso em tela, cinge-se a questão em se verificar se a notícia publicada pelo Jornal “O São Gonçalo” viola os direitos da personalidade do autor, ora apelante.
Às fls. 38 e 41, o autor juntou a manchete (capa) e a referida reportagem, cujo texto se transcreve abaixo:
[citação do trecho da reportagem que o autor considerou ofensiva.]
Como cediço, a hipótese demanda a ponderação entre normas constitucionais - a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade -, a fim de verificar qual delas deverá prevalecer no caso em tela. A exemplo das constituições democráticas contemporâneas, a Constituição Federal de 1988 proíbe qualquer espécie de censura, seja de natureza política, ideológica ou artística (art. 220, §2º). Assim, por violar um direito dos mais caros ao homem, a liberdade de expressão e informação (hoje considerada uma instituição fundamental para o funcionamento da democracia), a censura torna-se incompatível com o regime democrático.
[Relator cita doutrina de Luís Roberto Barroso sobre colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade e a Ementa do REsp 984.803/ES de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que conclui que o veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará.]
Em síntese, há de se observar in casu se as informações são verdadeiras, de interesse público, a fim de evitar a publicação de versões inverídicas, capazes de violar direitos da personalidade da pessoa a quem os fatos noticiados dizem respeito.
No caso em tela, restou comprovado nos autos a veracidade da reportagem publicada, porquanto o próprio autor, ora apelante, afirmou, na inicial, que realmente foi preso no dia 06/08/2009, por policiais da DRPI - Niterói, com base em mandado de prisão expedido há mais de 21 anos (fl. 04).
Com efeito, os fatos divulgados pelo jornal “O São Gonçalo” decorreram do cumprimento de mandado de prisão expedido pelo Juízo da 2ª Vara de Falência e Concordata da Capital (processo nº. 0095892- 79.2010.8.19.0001), sendo certo que não cabe à parte ré proceder à análise acerca da ilegalidade ou abuso da ordem judicial; se assim fosse, a liberdade de informar seria, na prática, obstaculizada.
Na hipótese, a reportagem jornalística se baseou no cumprimento do mandado de prisão, ressaltando-se que a fonte das informações foi a própria autoridade policial, conforme se depreende de fls. 36 (cópia da página do sítio eletrônico da Polícia Civil), cujo teor se transcreve: [transcrição do teor na notícia que constava do referido sítio eletrônico]
Insta salientar que, se os agentes públicos infringiram a lei e lhe causaram danos, poderá o autor, em via própria, postular a devida reparação, tal como narrou na inicial, não restando demonstrado nos autos que a matéria publicada pela ré tenha ultrapassado os limites constitucionais do direito de informar.
No que concerne à fotografia utilizada, também não se vislumbra qualquer afronta a direito da personalidade, tendo em vista que o autor informou que a imagem estava exposta em seu blog, ou seja, disponibilizada na internet, acrescentando-se que no sitio eletrônico da polícia civil também há fotografia da face do autor. Deste modo, entendo que a publicação restringiu-se a narrar fato público, de forma objetiva, sem expressões pejorativas, porquanto a autoridade policial informou que o autor estaria foragido desde 1988, havendo contra ele mandado de prisão pelo crime de falência fraudulenta.
Consequentemente, diante da ponderação entre os direitos constitucionais, considerando as provas dos autos, as alegações do apelante não merecem prosperar, vez que, in casu, a liberdade de imprensa foi exercida de modo adequado, sem cometer abusos ou excessos.
[Para corroborar seu posicionamento, o Relator cita Ementas dos seguintes julgados do TJ/RJ, cujos trechos mais relevantes estão abaixo destacados:
-AC 0020696-07.2004.8.19.0004: “Conflito entre o exercício da liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. Matérias veiculadas de cunho informativo sem qualquer juízo de valor. Caso concreto em que a imagem da demandante não foi maculada, não havendo dever de indenizar”;
-AC 0013918-53.2010.8.19.0087: “A matéria se limitou em narrar informações da autoridade policial que estava presente no local do crime, e nas declarações da testemunha que presenciou o fato. 9. A foto foi tirada na rua, local público, não expôs a imagem da vítima caída ao chão de forma chocante, no intuito chamar atenção dos leitores para vender mais jornal. 10- Não se vislumbra caráter sensacionalista na reportagem, mas a prática do exercício regular de direito, inerente ao estado democrático de direito.”;
- AC 0025249-25.2008.8.19.0209: “NOTÍCIA PUBLICADA EM JORNAL. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. USO DE IMAGEM. PESSOA PÚBLICA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE IMPRENSA. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA. A reportagem impugnada concilia-se com a liberdade de pensamento e informação garantida aos veículos de comunicação social pelo artigo 220 da Carta Magna. A proteção à intimidade não pode ser exaltada a ponto de conferir imunidade contra toda e qualquer veiculação de imagem de uma pessoa, constituindo uma redoma protetora só superada pelo expresso consentimento.”
- AC 0000298-71.2006.8.19.0003 – “SENTENÇA BEM FUNDAMENTADA QUE, COM PRECISÃO, ESCLARECEU O CONFLITO EXISTENTE. DIREITO À LIBERDADE DE INFORMAÇÃO QUE NÃO SE CONTRAPÕE, IN CASU, AO DIREITO À HONRA, PRIVACIDADE E IMAGEM. AUSÊNCIA DE COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ESTABELECIDOS NO ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REPORTAGEM DE CUNHO MERAMENTE INFORMATIVO E NARRATIVO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.”]
Nega provimento ao recurso e mantem a sentença apelada na íntegra.
Embargos de declaração
Recurso interposto sob as alegações de que o acórdão padece de omissão e obscuridade. Reitera os argumentos da apelação, afirmando ter havido erro na indicação do número de processo judicial que diz respeito à ação ajuizada pelo autor em face do Estado; que o cotejo entre as informações prestadas pela autoridade policial e a reportagem da parte ré demonstram o abuso, o que teria violado sua imagem.
Acórdão dos Embargos de Declaração
O recurso foi provido em parte apenas para reconhecer que, de fato, o número do processo judicial que dizia respeito à ação ajuizada pelo autor em face do Estado estava incorreto.
Observações e comentários
Em primeiro lugar, é importante notar que, quando o autor requer a remoção do conteúdo relativo à sua prisão do site do jornal, não o faz alegando direito ao esquecimento. Sua argumentação é no sentido de que houve abuso no direito de informar, já que a prisão, ao seu ver, era nitidamente ilegal, logo, não poderia ter sido amplamente divulgada. Seu raciocínio sugere que, na ponderação entre intimidade e liberdade de expressão, a primeira deveria prevalecer na sua situação particular, já que tinha sido vítima de um ato arbitrário do Estado e a divulgação deste ato seria uma forma de potencializar seus danos. Cabe indagar se, caso a formulação apresentada na inicial fosse no sentido de reconhecer que o jornal tinha o direito de ter publicado a matéria sobre sua prisão, mas que a perpetuação daquela informação na Internet lhe causaria danos, o desfecho poderia ter sido diferente.
O acórdão proferido no recurso de apelação trabalha com 2 categorias para análise: se as informações são verdadeiras e de interesse público. Como o caso era simples, não foram necessários maiores desdobramentos sobre a definição de interesse público, o que poderia sugerir que estes são parâmetros seguros para avaliação de casos que envolvam conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Entretanto, uma das ementas citadas no voto do Relator (AC 0025249-25.2008.8.19.0209) indica que a questão pode ser mais complexa quando o conceito de interesse público é discutível, já aquela era uma hipótese de ação ajuizada em razão da divulgação da foto de um jogador de futebol famoso vestindo a camisa do time do Flamengo quando ainda estava vinculado ao Clube de Regatas Vasco da Gama. Neste julgado, também prevaleceu a liberdade de imprensa, mas seria importante a fixação daquilo que se entende por interesse público e como figuras públicas são afetadas por este conceito (a vida particular dos famosos é de interesse público?).