"Direito ao esquecimento" no TJRJ
Rodolfo Assis
Caso 21 - J. Q. F. x ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
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Apelação cível n. 0055393-14.2014.8.19.0001 – 14ª Câmara Cível – Rel. GILBERTO CAMPISTA GUARINO
Resumo do caso
O Impetrante ajuizou Mandado de Segurança contra reprovação em exame social em concurso público, praticado ​pelo Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que o excluiu por notícia de ações que tramitaram no JECRIM Juizado Especial Criminal (JECRIM), no ano de 2007, em desfavor do impetrante, ora recorrido, que figurou como autor do crime de dano (art. 163 do Código Penal), por ter subido no telhado do condomínio onde morava, para o que danificou um cadeado. O Juiz de 1ª Instância concedeu liminar e ordem, e o Impetrado apelou. O recurso foi improvido por unanimidade.
Alegações do Impetrante
- que foi reprovado no Concurso Público de Admissão ao Curso de Formação de Soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, na fase denominada ´exame social´, em razão de ter sido apurada a existência de um registro de ocorrência nº 051-02836/2007/01, que gerou o processo de nº 0023762-72.2007.8.19.0203 envolvendo seu nome, pela prática de crime de dano.
- que o referido processo já foi arquivado definitivamente, tendo sido julgada extinta a punibilidade em razão da renúncia expressa da suposta vítima, não apresentando assim, o impetrante, qualquer mal que o inabilite à função militar pretendida.
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Pedido
Pleiteia a concessão de liminar visando à suspensão do efeito do ato que impede o impetrante de participar do Concurso ao Curso de Formação de Oficiais, permitindo que o mesmo possa participar em igualdade de condições com os demais concorrentes, determinando assim, a fim de que não ocorra a ineficácia da medida, caso ao final seja a mesma deferida. Requer a procedência do pedido para declarar a ilegalidade do ato administrativo declarando assim o direito líquido e certo do impetrante de participar do concurso em igualdade de condições com os demais concorrentes.
Contestação do Estado e apresentação de informações pela Autoridade Coatora
Na contestação do Estado
- que há inadequação da via eleita
- que não há direito líquido e certo, por impossibilidade jurídica do pedido e a legalidade do ato administrativo
- que o impetrante foi reprovado no exame social por ter contrariado normas editalícias, uma vez que durante a realização da pesquisa social, foi constatado que o impetrante não tem comportamento compatível com o que se espera de um futuro policial militar uma vez que havia figurado como autor de crime de dano, que deu origem a processo criminal.
- que o judiciário não pode substituir critérios previstos no edital.
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A autoridade coatora informou
- que que o impetrante foi reprovado na fase denominada Exame Social e Documental, por contrariar normas editalícias estabelecidas eis que durante a investigação social realizada foi constatado em desfavor do impetrante o RO nº 041-02836/2007-01, onde figura como autor de crime de dano artigo 163 CP, por ter subido no telhado do condomínio, área restrita à administração, que se encontrava devidamente trancafiada com cadeados, equipamentos estes danificados pelo referido candidato para ter acesso ao telhado.
- que resta claro que o candidato não estava apto a compor os quadros vinculados à Segurança Pública. Ressalta que, para a PMERJ, as características da carreira policial exigem a retidão, lisura e probidade do agente público, no qual é avaliado se os comportamentos do candidato são incompatíveis com o que se espera de um policial militar, que tem a função de preservar a ordem pública e manter a paz social.
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Sentença
Cuida-se de mandado de segurança visando a anulação de ato administrativo de reprovação do candidato ora impetrante no concurso para ingresso nas fileiras da Polícia Militar, na fase de exame social. O processo se encontra em ordem, presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, tendo sido assegurados às partes adversárias a ampla defesa e o contraditório. Sem preliminares.
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Após análise dos autos verifica-se que a pretensão deve ser deferida. A priori, cabe salientar que ao Poder Judiciário é vedado avaliar e sopesar os critérios estabelecidos pela Banca Examinadora, cabendo-lhe somente examinar a legalidade do ato administrativo praticado pelo agente estatal.
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O impetrante se inscreveu no concurso para o Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido reprovado na fase do Exame Social, sob o argumento de ter respondido a ação penal. É certo que à Administração Pública cabe, em situações como a dos autos, a aferição dos antecedentes sociais dos candidatos ao preenchimento de vagas no serviço público. E esta verificação tem como objetivo não só o acautelamento quanto àqueles que irão atuar como agentes administrativos, mas também ensejar a que a prestação administrativa seja feita de modo eficiente e por pessoal capacitado e norteado por valores de moralidade e atuação conforme a lei, que também vinculam o Poder Público.
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Entretanto, nessa pesquisa de comportamento e antecedentes sociais a Administração não pode se afastar dos parâmetros da razoabilidade que limitam a discricionariedade administrativa, visto que, ainda que lhe caiba a livre avaliação da conveniência e oportunidade, essa liberdade deve ser efetivada em atos que revelem a melhor maneira de concretizar a utilidade pública pretendida pela norma ou, no caso, pelo edital do concurso.
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No caso em tela não há qualquer condenação do impetrante, já que no processo envolvendo seu nome, restou extinta a punibilidade tendo em vista a renúncia expressa da suposta vítima (fls. 36). A exclusão do impetrante não seria razoável.
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Nesse sentido, a orientação jurisprudencial deste E. Tribunal de Justiça, a saber: (0017800-92.2007.8.19.0001 - APELACAO - Des. GILBERTO CAMPISTA GUARINO - DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL - Data de julgamento: 25/02/2015).
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Desta forma, a reprovação não se apresenta em consonância com o princípio da razoabilidade que norteia a Administração. Se por um lado o Estado invoca o princípio da Independência e Separação dos Poderes, para sustentar que o Poder Judiciário não pode se imiscuir no exame do ato administrativo, por outro lado estamos diante de ofensa ao princípio do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório, e mais, não se pode olvidar do princípio da Presunção de Inocência, previsto na Constituição da República em seu artigo 5º, inciso LVII. Destarte, tenho que o ato de exclusão do certame contraria o princípio da razoabilidade no acesso a cargos públicos, sendo, portanto, ilegal e passível de ser controlado pelo Judiciário.
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Dispositivo: Em face do exposto, CONCEDO A SEGURANÇA, na forma do artigo 269, I, do CPC, para permitir que o impetrante seja reintegrado ao certame para cumprir as demais etapas, e caso aprovado, seja nomeado e empossado no cargo de policial militar, além da anulação do ato administrativo de reprovação do candidato.
O Juiz concedeu a liminar e a ordem.
Apelação interposta pelo Réu
- que o concurso público é procedimento administrativo regulado por edital, norma de caráter genérico e abstrato, e que os atos administrativos revestem-se de presunção de legitimidade, que só a produção de robusta prova em contrário pode afastar.
- que o recorrido foi, em 2013, reprovado no certame, porquanto contrariou regra editalícia, já que o exame social constatou a existência de ação que tramitou no Juizado Especial Criminal (JECRIM), no ano de 2007, em desfavor do impetrante, ora recorrido, que figurou como autor do crime de dano (art. 163 do Código Penal), por ter subido no telhado do condomínio onde morava, para o que danificou um cadeado.
- que o fato põe-se em testilha com as obrigações e deveres inerentes à função que exercerá o Policial Militar cujas condutas moral e profissional devem, necessariamente, ser irrepreensíveis, cobrando-se-lhe procedimento ilibado nas vidas pública e particular.
- que, em casos como o presente, a atuação do Poder Judiciário limita-se ao exame da legalidade do procedimento administrativo.
Acórdão
No mérito, a prova pré-constituída, em especial o termo de renúncia de fls. 39 (mesmo índice eletrônico), a certidão exarada pelo responsável pelo expediente do XVI Juizado Especial Criminal da Capital, que dá conta da sentença extintiva da punibilidade proferida em novembro de 2007 (fls. 43, mesmo índice eletrônico) e, ainda, a cópia da tramitação processual da ação penal, atestam que, em 2013, quando o apelado foi reprovado no exame social, já havia 06 (seis) anos que aquela sentença fora proferida.
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Assim, não existia, à época da decisão administrativa de eliminá-lo, nenhuma informação a respeito de uma sua condenação, fosse no processo que tramitou no JECRIM, fosse em qualquer outro, não existindo, pois, motivo a substanciar sua eliminação do certame.
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Insta sublinhar que a permanência em concurso público de candidatos que sejam alvo de inquérito policial ou respondam a ação penal, sem que exista sentença condenatória, ou, ainda, com sentença penal extintiva de punibilidade, é reconhecida no âmbito dos Tribunais Superiores, já que não há como se por em dúvida razoável que nosso Ordenamento Jurídico é integralmente informado pelo princípio da não culpabilidade mitigada, insculpido no art. 5º, LVII, da Constituição da República, ao menos até o julgamento das ADCs n.ºs 43 e 44.
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E, ainda que assim não fosse, o impetrante não sofreu nenhuma condenação penal, muito menos em 2ª instância.
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Vale, dessarte, conferir precedentes da Suprema Corte, além de outros pinçados da egrégia Instância Especial: ARE 700066 AGR, AG. REG. NO RE N.º 450.971/DF, AG. REG. NO AI N.º 769.433, RESP 1302206, AGRG NO ARESP 132.782, RMS 30.734/DF.
Convém ressaltar, ainda, que o colendo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC n.º 126.315/SP (DJe 7/12/2015), na relatoria do eminente Ministro Gilmar Mendes, destacou a impossibilidade de se atribuir à condenação o status de perpetuidade, sob o fundamento de que: "a possibilidade de sopesarem-se negativamente antecedentes criminais, sem qualquer limitação temporal ad aeternum, em verdade, é pena de caráter perpétuo mal revestida de legalidade".
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Afronta, pois, o Postulado da Razoabilidade, que informa as Leis, os atos normativos e toda a atuação da Administração Pública, a eliminação do recorrido com base em processo com sentença extintiva de punibilidade, que tramitou havia, como antecipado, 06 (seis) anos antes do certame, o que (passe o truísmo...) é de pleno controle pelo Poder Judiciário.
É inconcebível a figura do estigma permanente no Direito Penal, especialmente em casos antiquíssimos de delitos de menor potencial ofensivo.
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A tutela da dignidade da pessoa humana inclui, sim, o direito ao esquecimento, que, bem aplicado, evita se infernize toda uma existência humana, mais ainda diante de questões menores, condenando-se alguém como uma espécie de “novo Judas Iscariotes”, situação extrema a que a falta de ponderação pode, sim, conduzir.
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Sobre o importante e novo tema, confiram-se recentíssimos precedentes também do egrégio Superior Tribunal de Justiça: ARESP 913598, ARESP 294085.
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Do exposto, deflui deva ser confirmada a sentença, em sede de duplo grau obrigatório de jurisdição.
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Tudo bem ponderado, voto no sentido de conhecer da apelação, negar-lhe provimento e, em remessa necessária, confirmar a sentença.
Acórdão: recurso improvido por unanimidade
Decisões mencionadas:
STF - ARE 700066 AgR, Ag. Reg. no RE n.º 450.971/DF, Ag. Reg. no AI n.º 769.433/CE, AgRg no RMS 31410/RJ e o voto de Gilmar Mendes no HC n.º 126.315/SP
STJ - REsp 1302206/MG, AgRg no AREsp 132.782/DF, RMS 30.734/DF, ARESP 913598, ARESP 294085
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Observações e Comentários
Há uma avaliação sobre quais fatos passados podem ser considerados relevantes e quais fatos passados são irrelevantes para utilização de avaliação social em órgãos públicos, ou seja, para a atribuição de fato com interesse público, o que afasta ou dificulta o “direito ao esquecimento”. Relevância é um conceito avaliativo, que depende de uma postura por parte de quem atribui a algum objeto, informação, pessoa e etc. Dentro do caso, parece se assumir que processos relacionados a crimes de menor potencial ofensivo (pena máxima não superior a dois anos) parecem ser enquadrados na condição de fatos irrelevantes, sem interesse público.
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