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Alguns aspectos psicológicos e jurídicos das fake news

Marcelo Santini Brando


Fake news são o assunto do momento. Não se fala em outra coisa. O atual Presidente dos EUA, Donald Trump, cuja eleição foi cercada de polêmicas ligadas à atuação de uma rede de desinformação russa[[I]], twitta “FAKE NEWS” sempre que confrontado com cobertura jornalística negativa e sustenta, não sem uma certa ironia[[II]], que as fake news são o maior inimigo do povo[[III]]. No Brasil, o tema tem chamado a atenção da sociedade e comunidade política e jurídica em razão dos possíveis efeitos perniciosos que podem surtir na liberdade de escolha do cidadão no processo eleitoral de 2018[[IV]]. Em julho de 2018, o Facebook publicou comunicado oficial anunciando ter excluído 196 páginas e 87 perfis no Brasil que violariam suas políticas de autenticidade ao formar uma rede coordenada “com o propósito de gerar divisão e espalhar desinformação”[[V]].

A preocupação com as fake news não é exagerada. Estudo publicado na revista Science revelou que notícias falsas se propagam mais rapidamente, mais profundamente, mais amplamente e mais distante de sua fonte de divulgação do que notícias verdadeiras (Vosoughi, Roy, & Aral, 2018). O estudo aponta ainda que esse efeito foi acentuado quando as notícias falsas dispunham sobre política, terrorismo, desastres naturais, ciência, lendas urbanas ou informações financeiras. De acordo com os pesquisadores, notícias falsas têm 70% mais chances de serem compartilhadas do que notícias verdadeiras.

Mas o que exatamente são as chamadas fake news? Em artigo publicado no periódico Informal Logic, Alex Gelfert (2018) sustenta que o fenômeno pode ser definido como a apresentação deliberada de afirmações enganosas ou falsas como se fossem notícias. E embora veicular notícias falsas, boatos, rumores etc. não seja uma criação humana do século XXI, o que confere às fake news de nossos tempos sua marca distintiva seriam os elementos sistêmicos inerentes ao seu processo de fabricação (notadamente suas fontes ou completa ausência de fontes) e de compartilhamento e propagação em massa, o que pode se dar pela atuação coordenada de perfis falsos em redes sociais e com ou sem o auxílio de bots[[VI]]. Essas características, por sua vez, segundo Gelfert (2018: 112-113), teriam o efeito pernicioso de mobilizar toda a sorte de vieses cognitivos e de heurísticas, modulando nossa capacidade de ajuizar corretamente sobre a realidade e, consequentemente, tomar decisões apropriadas.

Fake news e redes sociais “funcionam como esteroides” (Braucher, 2016) sobre pelo menos dois vieses cognitivos: o viés da confirmação e o viés de grupo. O viés da confirmação é a tendência humana de defender e reforçar suas crenças, opiniões e hipóteses no contexto da argumentação (Nickerson, 1998). Essa tendência se manifesta pelo recrutamento enviesado de funções psicológicas (atenção, sensopercepção, aprendizagem, memória e pensamento) no contexto da argumentação de tal maneira que atentemos prioritariamente para estímulos alinhados às nossas crenças, opiniões e hipóteses, e que sejamos capazes de aprender, de registrar, de evocar e de gerar mais facilmente argumentos alinhados às nossas crenças, opiniões e hipóteses. Quando o que importa é defender e reforçar crenças, opiniões e hipóteses que nos são caras, é provável que fake news congruentes com essa tendência sejam acriticamente aceitas como notícias dignas de confiança, o que, por sua vez, aumenta a probabilidade de compartilhamento e propagação.

Outro viés pertinente quando se fala em fake news é o chamado viés de grupo, isto é, a tendência que temos de gostar do grupo ao qual pertencemos e de não gostar do grupo ao qual não pertencemos. Essa tendência está ligada à teoria da identidade social, de acordo com a qual nossa identidade social é moldada pela necessidade de pertencimento e de construção de uma autoimagem positiva (Fiske, 2010: 460-463). Aqui as fake news funcionam como combustível para manter acesa a chama do pertencimento e do apreço pelo grupo. Quando o que importa é defender e reforçar nosso sentimento de pertencimento, é provável que fake news congruentes com essa tendência sejam acriticamente aceitas como notícias dignas de confiança, o que, por sua vez, aumenta a probabilidade de compartilhamento e propagação.

É claro que não absorvemos passivamente os estímulos do ambiente de maneira enviesada e, em seguida, clicamos em “Compartilhar” num impulso incontrolável. Temos as funções executivas (Diamond, 2013), principalmente o controle inibitório e a flexibilidade cognitiva, que nos permitem superar automatismos e maus hábitos de consumo informacional, interromper a sequência de processos psicológicos ligados à assimilação acrítica de fake news, e, assim, evitar o compartilhamento. Porém inibir a assimilação ou rever criticamente crenças e atitudes depende da motivação e da capacidade de processamento de cada um (Gilovich, Keltner, Chen, & Nisbett, 2016: 269-273). Um experimento conduzido por pesquisadores da Universidade de Ghent, na Bélgica, e publicado no periódico Intelligence de novembro de 2017 (De keersmaecker & Roets, 2017) reforçou as evidências de que as fake news afetam crenças e atitudes de maneira persistente, resistindo a mudanças mesmo que após sua apresentação os participantes fossem cientificados da falsidade da notícia. Mas o estudo foi além e os pesquisadores também observaram que quanto maiores as habilidades cognitivas das pessoas, maior a capacidade de abandonarem crenças ou juízos incorretos embasados em fake news.

É assim que, jogando com nossa constituição psicológica, o fenômeno das fake news atravessa temas das esferas privada e pública gerando consequências que não podem ser ignoradas. Três exemplos ilustram este ponto. Primeiro, a fabricação e propagação de notícia falsas relativas à vida pública ou privada de pessoas, sejam elas anônimas ou conhecidas, podem gerar consequências que variam desde a destruição de reputações, passando pelo banimento das redes sociais e chegando até aos linchamentos públicos violentos motivados por fake news. Em maio de 2018 uma multidão enfurecida na Índia matou uma mulher e feriu outras três após tomarem conhecimento, via WhatsApp, de notícias falsas de que elas teriam praticado tráfico infantil[[VII]].

Segundo, a fabricação e propagação de notícia falsas podem afetar a confiabilidade das instituições de comunicação social. Embora os meios tradicionais de comunicação social possam ser criticados por eventualmente borrarem a fronteira entre fatos e opiniões ou até por ocultarem uma agenda política na confecção de matérias e na seleção editorial, ainda são (ou pelo menos pretendem ser) relativamente confiáveis na geração e propagação de conteúdo que informa o público sobre os fatos do mundo político e social. Nos EUA, os ataques à imprensa desferidos pelo Presidente Donald Trump têm gerado reações. Após visita à Casa Branca, Arthur Gregg Sulzberger, editor do jornal The New York Times, repreendeu o Presidente dos EUA pelo uso de discurso inflamatório contra a imprensa e expressou a preocupação de que isso venha a resultar em violência contra jornalistas[[VIII]].

Por fim, a fabricação e propagação de notícia falsas podem afetar o próprio estofo de informação que viabiliza o funcionamento da democracia. Aviv Ovadya, Tecnólogo Chefe do Centro para a Responsabilidade da Mídia Social na Universidade de Michigan, acredita que a combinação de avanços em computação, inteligência artificial e aprendizagem de máquinas pode levar o fenômeno das fake news a um nível ainda mais perigoso no qual seria possível fabricar evidências da ocorrência de eventos que, de fato, não ocorreram[[IX]]. Aviv Ovadya chamou de “Infocalypse” o cenário de desinformação generalizada que põe em risco o funcionamento da democracia.

Como o Direito se coloca (ou não) diante desses desafios? As liberdades de expressão (art. 5º, incisos IV e IX), de informação e de imprensa (art. 220) foram orginalmente pensadas como direitos de defesa contra a intervenção estatal. A viabilização e promoção do autogoverno coletivo ocupam lugar de destaque na justificação dessa proteção constitucional (Chemerinsky, 2017: 1238-1239). A Constituição brasileira dedica cinco dispositivos para tratar da Comunicação Social (arts. 220 a 224) e, sem hesitações, o caput e os §§ 1º e 2º do art. 220 sinalizam uma tomada de posição favorável ao direito individual de comunicar livremente e do direito difuso de ser informado.

Na prática, vedada a censura, o Direito prevê algumas medidas nos casos de conflitos entre as liberdades de expressão, de informação ou de imprensa com outros direitos: a criminalização do uso de linguagem ofensiva da honra, a responsabilização civil por danos materiais ou morais, e a concessão do direito de resposta. Também se cogita – excepcionalmente – da proibição prévia da publicação ou divulgação de fato ou opinião nos casos em que não seja possível a reparação do dano a um direito da personalidade. Em 2014, com a aprovação do chamado Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), o Direito brasileiro reconheceu a possibilidade de ordem judicial determinar a remoção de conteúdo considerado infringente.

O problema é que o Direito não parece ser capaz de dar conta dos desafios apresentados pelo desenvolvimento tecnológico e social. Quase todas as medidas listadas acima foram concebidas num contexto histórico em que os processos produtivos da imprensa eram mais lentos e podiam até mesmo ser interrompidos, o que costumava ser representado em filmes com cenas dramáticas em que um personagem gritava “parem as máquinas!”. Os avanços tecnológicos e a migração da imprensa tradicional para as plataformas online dão novo ritmo aos processos produtivos. Uma notícia, seja ela verdadeira ou falsa, pode ser fabricada, divulgada e propagada em questão de minutos, tornando-se viral. Esse é um desafio que nem mesmo o Marco Civil da Internet parece ser capaz de superar, como será esclarecido abaixo.

Mas as insuficiências do Direito são ainda mais profundas. De um lado, como observam Kovach & Rosentiel (2014: 18), a ameaça governamental às liberdades de informação e de imprensa não está mais “apenas” na censura, pois as redes sociais e as novas plataformas de comunicação com a população criam o risco de o governo pretender suplantar os meios de comunicação pela divulgação de conteúdo próprio, gerando a crença incorreta de que o papel de fiscal das ações e autoridades governamentais comumente desempenhado pela imprensa seria dispensável. Como diz o ditado: “Jornalismo é publicar tudo aquilo que alguém não quer que seja publicado. Todo o resto é propaganda”. Além disso, os autores apontam que atualmente os governantes dispõem de ferramentas para criar pseudojornalismo na forma de portais de notícias falsos e financiam personalidades da mídia que estejam dispostas a promover políticas do governo.

De outro lado, o poder de cercear as liberdades de expressão, de informação e de imprensa tem sido progressivamente repartido entre Estado-nação e agentes econômicos, sobretudo das Big Tech: Google, Youtube, Facebook, WhatsApp, Instagram, WeChat, Twitter etc. controlam mecanismos de indexação, armazenamento e pesquisa de informações, bem como plataformas de interação social, compartilhamento e disseminação de informação. De acordo com o portal Statista.com[[X]], só o Facebook contava com 2,2 bilhões de usuários ativos em julho de 2018. Para colocar as coisas em perspectiva, é uma diferença aproximada de 500 milhões de pessoas a menos do que as populações de China e Índia somadas, que tinham, respectivamente, 1,40 bilhões e 1,33 bilhões de habitantes em 2017 [[XI]]. O problema, obviamente, está na falta de legitimidade, transparência e accountability das medidas tomadas por sociedades empresárias como Facebook para preservar a “comunidade” ou sua política de autenticidade e integridade.

Embora a aptidão para amenizar o impacto das fake news por parte das ferramentas jurídicas acima listadas seja uma questão empírica, há algumas razões que recomendam o ceticismo. Ainda que medidas drásticas como a exclusão de perfis ou páginas propagadoras de notícias falsas seja tomada pelo Poder Judiciário ou pela própria rede social (Facebook, Twitter, Snapchat etc.) ou a determinação de remoção de conteúdo com base no art. 19 do Marco Civil da Internet sejam tomadas, não é possível retornar ao estado anterior ao compartilhamento: não é possível que as (talvez) milhares de pessoas “desvejam” uma notícia falsa. E aquilo que foi visto tem o potencial de ser registrado na memória e influenciar crenças, atitudes e juízos posteriores, como sugerem os efeitos de primazia e de persistência de crença (Nickerson, 1998: 187-188). Como visto acima, o antídoto para o veneno depende de a pessoa estar motivada e ter a capacidade de rever criticamente suas crenças e atitudes valendo-se de suas habilidades cognitivas.

Tudo isso mostra que não existe uma única solução para problemas complexos. Do Direito não se pode esperar mais do que ele pode entregar: sem ignorar a possibilidade de adoção de medidas inibitórias, em regra as ferramentas jurídicas são adotadas após a criação e propagação de fake news. A checagem de fatos é uma forma importante de restaurar uma segurança epistêmica, mas também só opera após a propagação de fake news. Sabendo-se que não é possível restabelecer o status quo ante, uma abordagem promissora consiste em pensar no uso de diversas ferramentas que, agregadas, interfiram no curso causal que leva alguém a aceitar acriticamente as fake news como notícias dignas de confiança e compartilhá-las nas redes sociais. Nudges tecnológicos incorporados às interfaces com o usuário de redes sociais podem ser um caminho para induzir a desconfiança, o autocontrole e a abstenção do compartilhamento de fake news. Enquanto novas soluções são concebidas e testadas, resta torcer para que as notícias falsas não ocupem o centro dos debates e influenciem as eleições de 2018.



REFERÊNCIAS

Braucher, D. (2016, Dec. 28). Psychology Today [Fake News: Why We Fall For It]. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/us/blog/contemporary-psychoanalysis-in-action/201612/fake-news-why-we-fall-it - Acesso em 05/08/2018.

Chemerinsky, E. (2017). Constitutional Law. 5th edition. New York: Wolters Kluver.

De keersmaecker J., & Roets, A. (2017). “Fake news”: incorrect, but hard to correct: the role of cognitive ability on the impact of false information on social impressions. INTELLIGENCE, 65, 107–110. https://doi.org/10.1016/j.intell.2017.10.005

Diamond, A. (2013). Executive Functions. Annual Review of Psychology. Vol. 64:135-168 (Volume publication date January 2013). First published online as a Review in Advance on September 27, 2012. https://doi.org/10.1146/annurev-psych-113011-143750

Fiske, S. T. (2010). Social Beings: core motives in social psychology. 2nd edition. New York: Wiley.

Gelfert, A. (2018). Fake news: a definition. Informal Logic, Vol. 38, No.1 (2018), pp. 84–117.

Gilovich, T., Keltner, D., Chen, S., & Nisbett, R. E. (2016). Social Psychology. 4th edition, New York: W. W. Norton & Company.

Kovach, B., & Rosentiel, T. (2014). The Elements of Journalism: what newspeople should know and the public should expect. 3rd edition. New York: Three Rivers Press.

Nickerson, R. S. (1998). Confirmation bias: a ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology, Vol 2(2), Jun 1998, 175-220.

Vosoughi, S., Roy, D., & Aral, S. (2018). The spread of true and false news online. Science  09 Mar 2018: Vol. 359, Issue 6380, pp. 1146-1151. DOI: 10.1126/science.aap9559

[II] Uma coluna de checagem de fatos ligados à política norteamericana coordenada pelo jornal The Washington Post sugere que aquilo que o Presidente dos EUA sustenta ser “fake news” provavelmente é cobertura normal de eventos políticos. https://www.washingtonpost.com/news/fact-checker/wp/2018/07/26/once-again-fake-news-decried-by-trump-turns-out-to-be-true/?noredirect=on&utm_term=.b21ddcfffb46 - Acesso em 03/08/2018.

[IV]Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/tse-exercera-poder-de-policia-contra-fake-news-diz-fux-22786652 - Acesso em 04/08/2018. Ver também o artigo de autoria do Ministro do STF e Presidente do TSE Luiz Fux “Contra notícia falsa, mais jornalismo”. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,contra-noticia-falsa-mais-jornalismo,70002344745 - Acesso em 04/08/2018.

[VI] Veja a matéria publicada pelo Jornal Estado de São Paulo em que são descritos os personagens, as operações e a economia de uma fábrica de fake news conduzida por jovens na Macedônia. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/macedonia-uma-usina-mundial-de-fake-news/ - Acesso em 03/08/2018. Por outro lado, o estudo da revista Science citado no texto aponta que, contrariando a crença popular, o papel dos bots na propagação das fake news não é determinante. Na realidade, o estudo aponta que os bots propagam notícias falsas e verdadeiras em igual medida. Humanos, por outro lado, propagariam muito mais notícias falsas do que notícias verdadeiras. Os autores especulam que a informação nova pode ser vista tanto como elemento para a tomada de decisão quanto como algo que confere status social a quem conhece, fatores que incentivam o compartilhamento e a propagação. Como as fake news normalmente dizem respeito a assuntos cruciais do mundo político e social, é compreensível que as pessoas desejem se apresentar como portadoras de notícias bombásticas. Ver também: https://www.internetsociety.org/blog/2018/03/fake-news-spread-fast-dont-blame-bots/ - Acesso em 09/08/2018.

[VIII] Vanden, T. (2018, July 29). Usa Today, New York Times publisher A.G. Sulzberger chides President Donald Trump over 'fake news' claims.  Disponível em: https://usat.ly/2v03JEa – Acesso em 05/08/2018.

[XI] Informações disponíveis no portal das Nações Unidas: http://data.un.org/en/index.html - Acesso em 05/08/2018.

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