Silvia Follain
No caderno de cultura do jornal Folha de S.Paulo, de 11.03.2018, a propósito da estreia do espetáculo “Palhaços”, o ator Alexandre Borges deu uma longa entrevista à jornalista Mônica Bergamo, falando sobre sua trajetória profissional e sobre seu terceiro trabalho como diretor[1]. Não escapou, contudo, de ser interpelado sobre o episódio do vídeo que “vazou” na internet em 2016, no qual aparece acompanhado de um travesti. Diz não entender muito bem por que aquilo se tornou um escândalo e que “não estava fazendo mal a ninguém”. Coincidentemente ou não, o ator, que costumava interpretar personagens de destaque com perfil de galã, está afastado das novelas da Globo desde 2015. Termina a entrevista em tom melancólico: “O tempo não passa. A gente que passa, né? [risos] Li isso em algum lugar e achei interessante. É isso, acho que tem que aproveitar ao máximo cada momento.”
Em fevereiro de 2016, a cantora baiana Márcia Castro postou uma foto em seu Facebook junto ao músico Fael Primeiro com a seguinte legenda: “Um gigante na música, na arte e na alma”. Sua publicação foi seguida por uma enxurrada de comentários alertando que o músico havia sido acusado de abuso sexual e cobrando de Márcia uma postura de sororidade. Algumas postagens tinham tom de recriminação, pontuando que a cantora estaria privilegiando seu “networking’ profissional em detrimento da causa feminista. As reações foram motivadas pelo fato de que, alguns meses antes, Fael Primeiro havia sido apontado como autor de violência sexual, sendo denunciado no contexto da mobilização produzida pela campanha #meuamigosecreto. Ele ajuizou uma ação penal de calúnia em face da acusadora, que terminou em transação penal. Esta, por sua vez, registrou sua denúncia na Delegacia da Mulher. Quase um ano depois da publicação original, Márcia escreveu um longo post, contando que teve sua participação cancelada no trio elétrico “Respeita as Mina”[2] em razão da péssima repercussão da foto publicada e que chegou a temer por sua integridade física caso se apresentasse no evento. O trio era fruto de um projeto que tinha por objetivo chamar a atenção para casos de assédio contra a mulher e as organizadoras foram alvo de protestos contra a participação de “uma cantora que apoiava, defendia estuprador”. Lembra que optou por não apagar a imagem objeto da polêmica da rede social porque, até aquele momento, o músico não havia sido condenado, pesando apenas a palavra dos envolvidos que se acusavam mutuamente. Por fim, Márcia diz entender toda a exposição contra “machos violadores”, mas terminou pleiteando que “toda essa energia que está sendo posta na minha pessoa, na invasão do meu espaço de trabalho seja posta na pressão nas relações com os homens.”
Em 2013, o Twitter foi palco de um caso que se tornou célebre. Justine Sacco, esperava seu voo para a Cidade do Cabo, quando utilizou aquela plataforma para compartilhar um comentário infeliz com seus 170 seguidores: "Estou indo para a África. Espero não pegar HIV. Brincadeira. Sou branca". Antes que seu avião pousasse, seu post foi replicado milhares de vezes, usuários das redes sociais a xingavam e pediam que fosse demitida, o que acabou acontecendo. Aliás, sua demissão foi anunciada pela empresa em que trabalhava também via Twitter. A história de Justine é contada no livro So You’ve been publicly shamed do escritor galês Jon Ronson, publicado em 2015, que traz também outros depoimentos de pessoas que tiveram suas reputações destruídas na internet.
O que todos esses casos têm em comum? A sensação de que seus personagens foram moralmente desqualificados em razão de um episódio de exposição – voluntária ou não – na internet com consequências relevantes para sua vida pessoal e profissional. Estes episódios e os julgamentos subsequentes estão eternizados no imenso arquivo que a rede nos proporciona. Em um mundo de superexposição narcísica nas redes sociais e em que qualquer um é capaz de fazer um registro imediato de som e imagem com seu celular, parece ingenuidade supor que existe alguém a salvo de uma experiência de humilhação virtual. Por outro lado, esse espaço público que a internet proporcionou parece ter aberto uma porta e dado novo alcance à questão dos linchamentos digitais e de “justiçamentos” morais, que sempre serão potencialmente injustos. Quando a luz se volta para as histórias individuais das vítimas destes linchamentos, o resultado é um inafastável desconforto com as extensões estarrecedoras que eventos aparentemente banais podem atingir.
Diante destes casos, nós, profissionais do Direito, somos conduzidos quase que involuntariamente para um raciocínio que remete a categorias jurídicas tanto do universo criminal - como direito a um julgamento justo, à ampla defesa e à proporcionalidade da pena – quanto da esfera cível - como os aspectos ligados à proteção aos direitos da personalidade, aos danos morais e, finalmente, ao direito ao esquecimento.
Mas será que é esse mesmo um problema do Direito? Cabe ao Judiciário esta administração da moral? Será que não estamos diante de um dilema ético que se for repassado para as mãos de um juiz, este simplesmente emitirá, a pretexto de uma interpretação jurídica, o seu juízo de valor em substituição àquele dos indivíduos? Esta opção não se aproximaria dos riscos que Ingebour Maus apontou em alçarmos o Judiciário a superego da sociedade? Viveremos uma cidadania infantilizada e passiva, em que juízes serão os responsáveis por tutelar a efetivação do “direito a que a identidade virtual não prepondere sobre a identidade real”[3]? Que instrumentos objetivos estão ao alcance de um juiz brasileiro ao se confrontar com um caso em que se pleiteia o esquecimento como forma de recuperar uma reputação perdida? Convivemos com uma sociedade incapaz de perdoar, de dar espaço à reconstrução de uma biografia, mas capaz de praticar bullying virtual e de produzir fake news em contextos de extrema crueldade (como se deu no caso da vereadora Marielle Franco, que, logo após ter sido brutalmente assassinada, teve seu nome associado ao tráfico de drogas nas redes sociais sem que nenhuma prova fosse sequer mencionada). Nesse contexto, será que é nas demandas judiciais que acharemos a saída? Reféns de nós mesmos neste espaço público digital, entregaremos ao Judiciário a borracha salvadora capaz de limpar trajetórias e reescrever o porvir? Deixaremos que os juízes vaticinem o futuro do passado?
A questão se torna ainda mais delicada quando refletimos sobre as dificuldades já encontradas na jurisprudência em equalizar conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Em seu artigo intitulado “Nem todo case é um hard case: reflexões dos conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade”[4], Fábio Leite aponta para a ausência de previsibilidade e de preocupação com a coerência em julgamentos desta natureza. É que, não havendo disposições normativas precisas, conceitos jurídicos com alta carga de subjetividade são invocados pelos juízes, permitindo decisões inusitadas no caso concreto.
A realidade é que, ainda que façamos tais indagações, as demandas relativas aos direitos da personalidade no arquivo eterno na rede baterão às portas do Judiciário buscando uma resposta. Diante das dificuldades relativas ao esquecimento, é possível aventar saídas como a responsabilização dos difamadores ou a proibição de que os dados encontrados sejam utilizados para negar uma vaga de emprego, mas estas opções não resolvem o problema, seja porque continuam devolvendo ao aparato estatal a discussão sobre pontos de vista morais e o arbitramento do conflito, seja porque não eliminam o sofrimento individual com a memória que a internet insiste em perpetuar.
Fora do âmbito institucional, outras soluções foram pensadas como, por exemplo, a de tornar possível uma reputacion bankrupcy. Imaginando um mundo como retratado na série Black Mirror, onde todos são constantemente avaliados por sua reputação, a ideia flerta com a possibilidade de conferir segundas ou terceiras chances para o sujeito no espaço digital sem que seja necessária uma decisão judicial nesse sentido[5]. Empresas também se lançaram no mercado para vender o serviço de “gestão de reputação online”, oferecendo “modificar” a identidade na internet, monitorando a imagem do cliente e contatando páginas da web para que retirem conteúdos desabonadores[6]. O cuidado a ser tomado é que a reconstrução do perfil virtual não se torne um artigo de luxo capaz de excluir todos aqueles sem poder aquisitivo para dispor do serviço.
As dúvidas aqui levantadas não possuem resposta fácil, mas sim um oceano de incertezas. Envolvem, ainda, meandros tecnológicos que a cada dia nos surpreendem com suas potencialidades.
Talvez uma das poucas conclusões seguras é que precisamos refletir sobre a dinâmica própria do patrulhamento moral ou ideológico no âmbito da internet. A fúria que ele reflete pode desmontar hierarquias, instigar uma sociedade mais reflexiva, mas também pode revelar um comportamento covarde e violento, que se perde como forma de luta, já que se iguala às injustiças que parecia querer combater em um primeiro momento. Neste contexto, tem pertinência a observação de Timothy Snyder, inspirada na frase clássica de John Kennedy: quando liberdades individuais estão sob ameaça, não pergunte o que as instituições podem fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelas instituições[7].
[3] André Brandão Nery Costa defende que exista uma ferramenta que permita “que o indivíduo alcance a correspondência entre a identidade virtual e a real”. (COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na Internet: a scarlet letter digital. In SCHREIBER, Anderson. (coord.). Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p.184-206.)
[4] LEITE, Fábio Carvalho. Nem todo case é um hard case: reflexões sobre a resolução dos conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade no Brasil. In: LEITE, F.C.; ABREU, C.A.; PEIXINHO, M.M.. (Org.). Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais. 1ed. Rio de Janeiro: Gramma, 2017, v. 1, p. 209-232.
[6] No Brasil, temos como exemplo a empresa LegalTech (http://legaltech.com.br/).
[7] SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania: Vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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