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Liberdade de Expressão em Tempos de Incomunicabilidade

Silvia Follain


Em matéria intitulada “O Lugar do Silêncio”, publicada no site da Revista Piauí em 04.10.2017[1], a diretora Daniela Thomas escreve sobre a experiência vivida após a exibição de seu filme “Vazante” no Festival de Brasília. O debate que se seguiu ao longa-metragem revelou uma recepção inesperada da obra e colocou a diretora no centro de uma tensa controvérsia:

"No tal debate, depois de quase duas horas de violentos ataques por parte de algumas poucas pessoas que se impuseram com ameaças ou gritos pela posse do microfone, e que, quando não de posse dele, sinalizavam um absoluto horror às minhas palavras, com gestos grandiloquentes, socos na cadeira, interjeições de nojo, gargalhadas irônicas e outros assombros, sendo que a mediadora, também acuada, não fazia qualquer movimento para acalmar os ânimos ou retomar a lista de debatedores que havia pacientemente escrito em seu caderno, eu finalmente capitulei."

O longa-metragem mencionado se passa no século XVIII e tem como personagem central um fazendeiro e traficante de escravos. As críticas dirigidas à produção sinalizavam que era uma obra de brancos para brancos, em que a escravidão teria sido tomada apenas como pano de fundo sem que os personagens escravos tivessem voz na história. A matéria citada acima deu origem à publicação de resposta do crítico de cinema Juliano Gomes, que classificou a atitude de Daniela como “defensiva” e de “vitimização”, posturas consideradas tipicamente brancas. Para ele, este comportamento seria um exemplo daquilo que a pesquisadora norte-americana Robin DiAngelo chamou de “white fragility”, que tem como uma de suas manifestações a descrição de intervenções antirracistas como violentas, reforçando discursos históricos que representam os negros como perigosos[2].

A esta altura, é nítido que a discussão já havia se deslocado da obra cinematográfica em si para as posturas assumidas ao longo do debate no Festival de Brasília. Daniela Thomas se sentia afrontada, afirmando em seu texto que “[F]oi tudo muito violento. Nós com certeza não estávamos preparados para tanto ódio”. Já Juliano Gomes a acusou de confundir “conforto com segurança”, pois a diretora teria demonstrado ser incapaz de admitir qualquer abalo na sua forma discursiva, enquanto os negros precisam pensar e repensar todo o tempo como devem falar para serem ouvidos.

Ainda em 2017, outro episódio envolvendo o conceito de fragilidade branca ganhou notoriedade. Uma estudante muçulmana, vice-presidente do Conselho Estudantil da Universidade Dalhousie, apresentou uma moção de boicote às comemorações de 150 anos do Canadá[3]. Moções similares foram adotadas por estudantes em várias partes do país, mas, no caso de Masuma Khan, o movimento deu margem a muitas controvérsias. Outros membros do conselho chegaram a sugerir que, se a colega não reconhecia a legitimidade do Canadá, deveria abrir mão dos direitos garantidos pela Carta de Direitos e Liberdades individuais. Respondendo a críticas publicadas no Facebook por um grupo jovem conservador, a aluna se mostrou impaciente com a polêmica (“At this point, fuck you all”) e reafirmou sua posição em postagem bastante enfática[4], que terminava com as seguintes hashtags: #unlearn150, #whitefragilitycankissmyass e #yourwhitetearsarentsacredthislandis. Alguns dias depois, outro estudante apresentou uma queixa formal contra Khan perante a Universidade, alegando que apontar pessoas brancas que estavam celebrando o aniversário do país como alvos consistia em discriminação flagrante.

Naquele momento, as notícias sobre o ocorrido já tinham ultrapassado as fronteiras do campus e Masuma Khan tinha suas redes sociais bombardeadas por comentários negativos. Em pronunciamento enviado à imprensa, o responsável por assuntos estudantis de Dalhousie declarou que o caso envolvia assuntos complexos e que esperava que a comunidade acadêmica pudesse exercer papel ativo para promover o diálogo crítico e construtivo sobre oportunidades para avançar em temas como equidade, diversidade e metas de inclusão. A queixa apresentada deu origem a uma investigação formal, que concluiu no sentido de que a aluna infringiu o código de conduta universitário, em especial, o dispositivo que proibia qualquer atitude indesejada ou persistente que o estudante sabia, ou deveria saber, que poderia causar sentimento de humilhação, intimidação ou assédio em outro. A Universidade sugeriu uma solução informal para o imbróglio, que dependia do comparecimento de Masuma Khan a sessões de aconselhamento sobre liderança e construção de alianças. A aluna, porém, recusou a proposta, afirmando que não via nada de errado com o seu tom, afinal, a raiva seria perfeitamente razoável para quem é um alvo por questões pessoais. A estudante argumentava que pessoas como ela nunca teriam o poder de oprimir os privilegiados, já que era ela quem perderia oportunidades de emprego por possuir nome diferente ou quem teria que passar por mais procedimentos de segurança em aeroportos. O caso foi parar no Comitê de Disciplina do Senado e Khan contratou um advogado para defendê-la.

Para além do argumento da fragilidade branca, os dois casos narrados têm em comum o deslocamento da discussão do conteúdo para a forma. Em determinado momento, o cerne da questão deixa de ser a obra cinematográfica ou a moção de boicote e passa a ser a reivindicação, de um lado, do direito de se expressar com virulência proporcional à pesada carga emocional que as injustiças históricas proporcionam e, de outro, de se sentir intimidado com este tipo de manifestação e poder expressar este sentimento sem ser repreendido. O interesse não era mais se o filme tratou do patriarcalismo ou se a estudante tinha legitimidade para vincular aquela causa política ao seu cargo no Comitê Estudantil da Universidade. A conta a ser acertada era muito mais ampla e envolvia a injustiça estrutural da sociedade.

Como se nota, a grande questão deste deslocamento é que o diálogo abandona o nível das ideias e aterrissa no campo pessoal, o que perigosamente flerta com uma disputa por superioridade moral. A discussão de fundo perde a importância e vige a lógica da desconfiança entre os interlocutores. Na cena contemporânea dos debates entre aqueles que se colocam à esquerda do espectro político, é importante que nos perguntemos onde este tipo de impasse vai nos levar. O que temos assistido é que, quando o enfrentamento se dá entre indivíduos e a disputa está no direito de impor um tom agressivo, o saldo é o linchamento, o veto e o escracho. Na melhor das hipóteses, temos a submissão e não o consenso.

A livre circulação de ideias está aqui sendo posta em perspectiva não a partir das tradicionais ameaças institucionais, mas pelo veto descentralizado dos indivíduos – ao qual não se atribui um juízo de valor de antemão negativo. A principal preocupação é que a dinâmica da imposição da verdade pressupõe a (frágil) tomada de poder. Em momentos em que o discurso fundamentalista e autoritário ganha força, cabe nos perguntarmos se queremos mesmo jogar este jogo.

[4] A postagem continuava com: “Be proud of this country? For what, over 400 years of genocide?”.

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