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O discurso anti-jogos e o pânico moral: um debate sobre violência simulada e seus efeitos

Fernanda Araújo


A ocorrência do massacre de Suzano, em 13 de março, na Escola Estadual Professor Raul Brasil, reacendeu o debate sobre videogames, violência, sua possível correlação com a motivação dos atiradores em mass shootings e a sua influência no comportamento dos adolescentes consumidores de jogos violentos.

Videogames são jogados por mais de 90% de jovens americanos entre 13 e 17 anos, 84% afirmando ter um console dedicado exclusivamente para gaming. [1] Considerando que estatísticas parecidas sobre a popularidade de videogames se repetem em outros países, entende-se a preocupação – e até mesmo a histeria – sobre possíveis efeitos negativos em torno da atividade. Os benefícios cognitivos e sociais ao se jogar videogame já são  reconhecidos [2], assim como sua importância enquanto mídia e como meio de expressão artística, estando suscetível à proteção constitucional. No entanto, as opiniões negativas sobre videogames se baseiam no suposto efeito comportamental em jovens, que alimentaria agressividade e influenciaria inclusive atentados em massa, exigindo assim que haja maior regulação e até mesmo censura em jogos que retratem comportamentos antissociais.

Com o avanço tecnológico, representações de violência se tornaram mais realistas e imersivas, levando à hipótese de que jovens em processo de formação seriam facilmente influenciados na medida em que suas atitudes in-game vazariam para a “vida real” e, portanto, os tornariam agressivos e propensos a atitudes violentas. Incidentes como o massacre de Columbine e uma suposta predileção dos atiradores pelo jogo de tiro em primeira pessoa Doom ajudaram a cimentar essa crença no imaginário popular, apesar de tal relação ainda ser tópico de debates na comunidade científica.

O framework de estudo mais utilizado pelos pesquisadores da área para análise da relação entre o consumo de videogames violentos e o comportamento de adolescentes é o chamado general aggression model (GAM), que propõe a ideia de que, ao jogar um jogo violento, um “modelo” cognitivo de comportamento igualmente violento pode ser criado. [3] Caso o jogador se encontre em uma situação hostil, tal modo de agir violento seria mais facilmente ativado em decorrência da exposição prévia à violência simulada, justificando assim regulação rigorosa. No entanto, outras análises vêm encontrando falhas no GAM, que não leva em conta, por exemplo, fatores como “indivíduos violentos têm predileção por mídias violentas”. Existe, ainda, a questão do viés de publicação, que, quando é retirado da equação, revela que a relação jogos-violência é menor do que constatada pela maioria dos estudos, e que até mesmo aqueles que seguem melhores práticas de pesquisa mostraram ser bastante afetados [4] e com resultados inflados.

Recentemente, um estudo realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, procurou testar a hipótese de que o tempo gasto jogando jogos violentos estaria diretamente relacionado com agressividade manifestada por adolescentes, sendo um dos primeiros estudos da área a se utilizar desse modelo de preregistered hypothesis testing, levando em conta também as principais falhas e vieses de estudos anteriores sobre o tema. O estudo contou com a participação de 1.004 adolescentes e seus responsáveis, e concluiu não haver relação estatisticamente relevante e nem que exista um tipping point de exposição a jogos violentos que levaria a um comportamento violento. [4]

Apesar de tais resultados, o debate na grande mídia continua raso, como se pode ver na cobertura midiática pós-Suzano: o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que a culpa estaria “[n]essa garotada viciada em videogames violentos” [5]. Alinhados à declaração de Mourão, diversos sites de notícia ressaltaram que os atiradores seriam gamers e que estariam envolvidos principalmente com jogos violentos, frequentando inclusive uma lan-house para o acesso à internet e para jogar jogos “de combate com armas”, “de tiro” [6], atribuindo à influência de jogos violentos o massacre ocorrido. Em entrevista ao Globo, o especialista Salah H. Khaled Jr. afirma que “os games são usados como ‘bodes expiatórios’ para evitar a discussão de problemas sociais complexos”, e que é preciso “enfrentar a questão de modo responsável, o que não é fácil em um contexto no qual o pensamento científico está em descrédito e a pós-verdade se tornou aceitável.” [7]

Nos Estados Unidos, a situação se repete. Após Sandy Hook, Donald Trump culpou videogames pela tragédia, declarando que “a violência e glorificação existente nos videogames deve ser combatida – está criando monstros!”. Nessa linha, parlamentares americanos emitiram opiniões parecidas, afirmando que jogos violentos seriam responsáveis por um processo de dessensibilização dos jovens quanto ao valor de uma vida. [8]

A crítica ao consumo de mídia violenta não se esgota nos jogos de tiro ou “de combate com armas”, estendendo-se para outros gêneros considerados prejudiciais e incorporando-os na sopa de pânico moral. Um caso emblemático: RapeLay. Lançado em 2006 localmente no Japão pela companhia Illusion, o jogo estaria fadado à relativa obscuridade do gênero de simulação erótica, se não tivesse sido viralizado pelo seu conteúdo abominável. RapeLay permite que o jogador moleste e estupre uma mãe e suas duas filhas, uma com apenas 12 anos. Na fase inicial, o jogador controla um par de mãos com o mouse e molesta a personagem, desenhada com traços típicos de anime, dentro do metrô, para em seguida estuprá-la. O objetivo do jogo se torna estuprar o resto de sua família das mais diversas maneiras degradantes, incluindo cenários de estupro grupal e aborto forçado. Três anos depois de seu lançamento, estampou manchetes dos principais jornais ocidentais por estar sendo disponibilizado fora do Japão pela internet. A comunidade internacional iniciou campanhas de boicote, o que levou o jogo a ser banido em vários países, e retirado de circulação no Japão. Como resultado, o jogo adquiriu popularidade e status de clássico na internet devido ao efeito Streisand [9], sendo lembrado e jogado até hoje pelo shock value de seu conteúdo grotesco.

Em março deste ano, outro jogo gerou controvérsias por ser uma espécie de sucessor espiritual de RapeLay. Em Rape Day, o jogador controla um serial killer durante o apocalipse zumbi, no qual aproveita para matar e estuprar brutalmente mulheres. A limitação da mecânica do jogo, uma visual novel na qual o jogador faz escolhas para progressão do enredo, contribui para o ar tosco do jogo: imagens estáticas e mal desenhadas retratando cenas brutais, dignas de um filme B. Apesar disso, Rape Day recebeu atenção suficiente para atingir veículos internacionais que, além de contribuírem para a viralização do jogo, pediram o cancelamento imediato do seu lançamento na plataforma de jogos Steam [10]. Considerando a controvérsia, a Valve, companhia dona da Steam, deu declarações afirmando que o jogo poderia trazer riscos e um ônus desconhecido, optando por retirá-lo da plataforma [11], apesar de ainda estar disponível para download no site do criador. Ainda, Rape Day incitou declarações de parlamentares como Hannah Bardell (Scottish National Party), que descreveu o jogo como “algo totalmente repugnante e pervertido”, exigindo que o governo do Reino Unido tomasse providências para evitar que desenvolvedores e plataformas de jogos pudessem criar obras do tipo sem consequências [12].

Nessa questão regulatória, um dos casos mais emblemáticos de tentativa de regular jogos violentos se deu em 2005 por meio de uma lei do estado da Califórnia que buscava criminalizar a venda de jogos considerados violentos para menores de idade. Eventualmente o assunto chegou à Suprema Corte Americana (Brown v. Entertainment Merchants Ass'n), que julgou não haver evidências que corroborassem a relação jogos violentos e violência. Assim, em decisão de 7-2, a Corte afirmou que videogames são “protected speech” sob a Primeira Emenda da mesma forma que outros tipos de mídia [13], derrubando assim a lei californiana.

Ecoando a opinião dos pesquisadores e especialistas supracitados, a tentativa de censurar ou proibir tais conteúdos violentos é contraprodutiva e um desvio na busca e análise das verdadeiras causas do comportamento violento de adolescentes. É necessário um debate mais sofisticado para um problema complexo, que não reduza a questão aos videogames.Ainda, o pânico moral, como no caso de Rape Day, resulta em desenvolvedores antecipando o repúdio coletivo e midiático contra a obra, e se utilizando disso para alavancar a popularidade do tema em vez de cair no esquecimento pela sua qualidade duvidosa.

Pensando na questão da liberdade de expressão e considerando a relação não comprovada entre a violência manifestada por adolescentes e seu consumo de jogos, "the Federal Government has no business [...] to bar the sale of books because they might lead to any kind of "thoughts." Thoughts and desires not manifested in overt antisocial behavior are generally regarded as the exclusive concern of the individual and his spiritual advisors". [14]

[9]  O efeito Streisand se caracteriza pela tentativa de censura/remoção de determinado conteúdo que acaba por popularizá-lo, tomar proporções ainda maiores em razão da curiosidade que as pessoas desenvolvem pelo “proibido”.

[11]https://steamcommunity.com/games/593110/announcements/detail/1808664240304050758

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