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Palavras ao vento: liberdade de expressão e fofocas na roleta das decisões judiciais

Silvia Follain


A dificuldade na resolução de conflitos estabelecidos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade não é novidade no cenário acadêmico jurídico brasileiro. O aspecto curioso é que, apesar de ser um tema extremamente debatido, as decisões nos casos concretos continuam causando perplexidade[1]. E esta perplexidade não se dá, necessariamente, pela decisão final de procedência ou improcedência do pedido, mas pelo rastro de perguntas sem respostas jurídicas objetivas deixado ao longo dos caminhos trilhados na fundamentação das sentenças ou dos acórdãos judiciais.

Tomemos como exemplo uma hipótese aparentemente simples: a revelação, por parte de um veículo de comunicação especializado em fofocas, de um aspecto da vida privada de um artista de televisão sem fotos ou documentos que atestem a veracidade do afirmado.

O primeiro questionamento paira sobre a própria existência destas publicações destinadas a lucrar com revelações íntimas e constrangedoras sobre a vida dos famosos. Como avaliá-las? Os responsáveis cometem ato ilícito ao mercantilizar a intimidade alheia? Na maior parte das vezes, o autor das fofocas não pode garantir a veracidade da informação e os assuntos tratados não podem ser enquadrados como de utilidade pública, apesar de encontrarem respaldo na audiência. O quadro “A Hora da Venenosa”, apresentado por Fabíola Reipert, no programa “Balanço Geral” da TV Record, por exemplo, superou a audiência da TV Globo por 7 dias consecutivos[2]. Segundo informações da Revista Veja, antes de conquistar este espaço no programa de televisão, Fabíola já era a blogueira mais popular do portal da Record na internet, chegando a 40 milhões de visualizações mensais e ainda possuía um canal no Youtube com 128.000 seguidores inscritos.[3] No blog, fazia comentários sobre acontecimentos da vida de famosos, como este sobre a atriz Bruna Marquezine: “a irmã de Neymar andou dizendo por aí que a namorada do irmão fez plástica no nariz, SIM, apesar de Bruna negar publicamente. A fofoca chegou ao ouvido da atriz global que não gostou NADA de saber. (...) O que Rafaella esqueceu de dizer foi que Bruninha também fez preenchimento nos lábios, como Anitta”[4]. Outra publicação da blogueira afirmava: “Quem acompanha o mundinho pantanoso dos famosos certamente já notou que Latino levava uma vida de solteiro mesmo sendo casado. Rayanne Morais, que está casada com ele há um ano e pouco, se cansou disso e desabafou com as amigas que não aguentava mais, conforme o blog havia publicado. Mas agora aconteceu uma reviravolta nessa novela mexicana. Quem sabe rolou uma espécie de vingança”[5].

Daí se desdobram perguntas: Celebridades têm uma margem menor de proteção ao direito à imagem em razão da exposição que sua profissão proporciona?[6] Ser célebre sugere que há um grau de interesse público na sua imagem? Publicar afirmações, cuja veracidade não se pode provar, é um abuso de direito?

E se aquele que divulga uma informação sobre a vida particular de um famoso pode provar o afirmado? Ainda assim é abuso de direito de expressão porque não há interesse público na notícia veiculada?

E qual o critério para fixar os danos morais? Para aqueles que entendem que é um ato ilícito, os valores deveriam ser astronômicos para inviabilizar a prática. Para os que entendem que as celebridades têm uma esfera menor de proteção ao direito à imagem e estão sujeitas a este tipo de exposição, os valores serão pensados mais em termos de compensação de eventuais danos concretos. Em outras palavras, o termômetro do “prudente arbítrio do juiz” ao fixar a indenização pode ser movido pela intenção de punir ou pela preocupação em reparar o dano sofrido em sua real dimensão, o que gera enormes distorções entre situações potencialmente semelhantes.

Em 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou ação movida por Luciano Huck contra a blogueira mencionada acima – Fabíola Reipert. A sentença já tinha sido favorável ao autor no sentido de determinar a retirada de notícias ofensivas, abster-se de publicá-las sob pena de multa diária e condenar a ré a pagar indenização de R$1.000.000,00 a título de danos morais. As tais notícias ofensivas envolviam a revelação de supostas relações extraconjugais mantidas por Huck, que teriam motivado brigas com sua esposa (também famosa apresentadora de televisão) e mencionavam ainda ter sido ele responsável pela gravidez da moça pivô da traição. O Desembargador Relator sorteado[7] para julgar o recurso de apelação afirmou:

“E, por fim, não há continência na narração. Ao contrário. Além de ser mera fofoca sobre a vida alheia, as matérias são repletas de expressões injuriosas e ofensivas, desnecessárias a quem pretende relatar de modo sério a prática de adultério (“escapadinha”; “apartamento em SP onde leva algumas coleguinhas”; “marqueteiro”; “estripulias”; entre outras).

4. Houve manifesta violação aos direitos fundamentais da intimidade, da privacidade e da honra do autor, ao ver veiculados, na imprensa, em programa de televisão e na rede mundial da internet, matéria leviana e de cunho notoriamente irônico e sensacionalista sobre fatos pessoais sem a menor sombra de veracidade. Ainda que fossem verídicos, não diriam respeito ao público em geral.”

O trecho acima transcrito transparece uma dúvida já aqui exposta e que permanece sem resposta no acórdão. Se a blogueira conseguisse provar a traição, as brigas do casal e a gravidez, ainda assim seria condenada porque a divulgação só serviria para a satisfação de curiosidade mórbida do público[8]?

Além disso, dá a entender que poderia haver uma forma de narrar os mesmos fatos sem que isso fosse considerado ofensivo (ou injurioso). Se a blogueira tivesse utilizado outro vocabulário, poderia ter relatado a prática de adultério “de forma séria”? A forma como expõe os supostos acontecimentos influencia enquanto parâmetro a ser considerado nos casos de revelações cuja veracidade não se pode garantir?

O acórdão suscitou embargos infringentes e a sentença foi reformada apenas para reduzir o quantum indenizatório, que acabou fixado em R$250.000. Em primeira instância, como já mencionado, a condenação foi em R$1.000.000,00. O Revisor e o Terceiro Desembargador votavam por reduzir para R$30.000,00. O relator sorteado era o único que entendia pelo valor de R$250.000,00, mas sagrou-se vencedor após os embargos infringentes. A ré interpôs recurso especial inadmitido na origem, o que foi objeto de recurso de agravo[9]. Em 24.05.2018, foi proferido o despacho determinando a subida dos autos às instâncias superiores.

A necessidade de definição de parâmetros nas decisões judiciais sobre o tema não está apenas relacionada à ideia de coerência, que é essencial ao conceito de jurisprudência, mas também ao próprio compromisso assumido, no âmbito processual, com o direito à ampla defesa. Por exemplo, caso restasse consagrado que um dos parâmetros para arbitrar a indenização são os lucros obtidos com audiência por quem divulgou a informação, a outra parte poderia provar que a celebridade supostamente atingida em sua honra e direito à intimidade, na realidade, ganhou mais notoriedade, o que poderia ser demonstrado por meio de pesquisa ibope de público da atração da qual participa ou da verificação do número de acessos a site da internet. Neste caso, a indenização poderia ser reduzida. Este tipo de prova poderia demandar perícia, o que só poderia ser realizado na instrução do processo em primeira instância. Mas, se esta questão surge apenas incidentalmente em discussão no julgamento em segunda instância, a possibilidade de produção desta prova se torna remota.

O que resta claro é que as divergências ao arbitrar a indenização são reflexos de todos os pontos deixados em aberto na elaboração da fundamentação do acórdão. Os elementos que os desembargadores citam como base para defender suas posições quanto ao montante da condenação revelam a desconexão em pontos de vista anteriores[10]. Em algum momento, fala-se na punição do “infrator” para que sirva de “exemplo a tantos quantos tomem conhecimento do resultado do julgamento”[11]; em outra situação, é aventada a tentativa de “aplacar o intuito mercantilista de empresas de entretenimento, que apostam no tabelamento por baixo das indenizações para preservarem hostilidades contra vítimas indefesas do poder da mídia[12]; e, por fim, menciona-se o ressarcimento da vítima pela lesão ao seu direito à honra e à intimidade.

Em futuro próximo, caso o agravo da ré seja julgado procedente, o Superior Tribunal de Justiça se posicionará sobre a matéria. Qualquer tipo de previsão sobre o julgamento que aqui fosse apresentada poderia ser lida como um comentário irresponsável ou leviano sobre os Ministros do Tribunal. Por isso, termino apenas com o palpite de que o acórdão, em algum momento, afirmará que a Constituição acolheu tanto a livre manifestação de pensamento como a liberdade de informar, além de ter abraçado o direito de ser informado. A pergunta que gostaríamos de ver respondida é o que cabe, exatamente, dentro deste abraço.

[1] Em artigo intitulado “Nem todo case é um hard case: reflexões dos conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade”, Fábio Leite apresenta um panorama do problema, assinalando que, sem se partir da lógica binária da opção entre regras e princípios, é preciso questionar o método brasileiro de resolução de conflitos que envolvam a liberdade de expressão. (In: LEITE, F.C.; ABREU, C.A.; PEIXINHO, M.M.. (Org.). Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais. 1ed. Rio de Janeiro: Gramma, 2017, v. 1, p. 209-232.)

[6] Anderson Schreiber, por exemplo, entende que o critério de “pessoa pública” é um falso parâmetro e que deve ser abandonado. Para ele, o fato de as celebridades viverem de sua imagem na mídia só reforça a importância que a preservação da representação física assume para estas pessoas.(Ver SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.)

[7] Como houve divergência com relação ao valor da indenização, o Desembargador sorteado inicialmente como relator redigiu voto vencido e quem, ao final, constou como relator do recurso de apelação, por designação, foi o Desembargador Eduardo Sá Pinto Sandeville.

[8] A expressão foi utilizada pelo Desembargador Relator sorteado para julgar o recurso de apelação na página 10 de seu voto.

[9] Também foi interposto recurso extraordinário, mas este teve seu seguimento negado por ausência de repercussão geral com base no art.1030, I, “a”, do NCPC. O Recurso Especial foi inadmitido porque não teria sido demonstrada a violação aos arts.14, 1.046 e 942 do CPC e art.944, do CC. Além disso, entendeu-se que incidiria a Súmula 7, do STJ, ou seja, a análise do valor atribuído aos danos morais demandaria reexame de matéria fática, o que não se admite nas instâncias extraordinárias.

[10] Esta questão pode estar relacionada com a própria dificuldade dos tribunais brasileiros de tomarem uma decisão realmente coletiva. Sobre este tema, ver LEITE, Fábio; BRANDO, Marcelo. Dispersão de Fundamentos no Supremo Tribunal Federal. Direito, Estado e Sociedade, n. 48, jan/jun 2016, p.139-166.

[11] Trecho retirado do voto do Desembargador Relator dos embargos infringentes (1066520-28.2014.8.26.0100/5000 – 6ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP).

[12] Trecho citado pelo Relator em seu voto na apelação.

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